foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com
o título que procuravas. atrás desta pista visual, lá foste
abrindo caminho pela loja dentro através da barreira
cerrada dos livros que não leste, que de cenho franzido te
olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te.
mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio
deles se estendem por hectares e hectares os livros que
podes passar sem ler, os livros feitos para outros
usos para além da leitura, os livros já lidos sem ser
preciso sequer abri-los por pertencerem à categoria
do já lido ainda antes de ser escrito. e assim transpões
a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima a infantaria
dos livros que se tivesses mais vidas para viver
certamente lerias também de bom grado mas
infelizmente os dias que tens para viver são os que
tens contados. com um movimento rápido passas por cima
deles e vais parar ao meio das falanges dos livros que tens
a intenção de ler mas antes deverias ler outros, dos
livros demasiado caros que podes esperar comprar
quando forem vendidos em saldo, dos livros idem
idem aspas aspas quando forem reeditados em for-
mato de bolso, dos livros que podes pedir a alguém
que te empreste e dos livros que todos leram e por-
tanto é quase como se também os tivesses lido. esca-
pando a estes assaltos, avanças para diante das torres do re-
duto, onde te opõem resistência
os livros que há muito tempo programaste ler,
os livros que há anos procuravas sem os encontrares,
os livros que tratam de alguma coisa de que te ocupas
neste momento,
os livros que queres ter para estarem à mão em
qualquer circunstância,
os livros que poderias pôr de lado para leres se calhar
este verão,
os livros que te faltam para pores ao lado de outros
livros na tua estante,
os livros que te inspiram uma curiosidade repentina,
frenética e não claramente justificada.
e lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em
campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já
calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio
seja atacado pelas emboscadas dos livros lidos há tanto
tempo que já seria altura de voltar a lê-los e dos livros
que dizes sempre que leste e seria altura de te decidires
a lê-los mesmo.
- italo calvino -
(se uma noite de inverno um viajante)
- jan jelinek -
(tendency)
2 comentários:
os livros teem auras, e tê-los é definitivamente diferente de não os ter.
Ler, não ler passa a ser secundário. eles trabalham em silêncio.
A posição mais correcta para ler é em pé-
É das minhas passagens preferidas do livro. As categorias de livros que o Calvino enumera - é mesmo assim!
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