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terça-feira, 27 de julho de 2010

italo calvino vs mazgani

tu leitor julgavas que ali debaixo do alpendre o meu
olhar estava apontado para os ponteiros recortados
como alabardas de um redondo relógio de velha estação,
no vão esforço de fazê-los andar para trás, a percor-
rer em sentido contrário o cemitério das horas passa-
das jacentes exangues no seu panteão circular. mas
quem te diz que os números do relógio não se debruçam
de janelinhas rectangulares e eu não vejo cada minuto
cair-me em cima de repente como a lâmina de uma gui-
lhotina? seja como for, o resultado não mudaria muito:
mesmo avançando num mundo todo polido e escorregadio
a minha mão contraída no pequeno leme da mala de ro-
dízios não deixaria de exprimir uma recusa interior,
como se aquela ligeira bagagem constituísse para mim
um peso ingrato e extenuante.

- italo calvino -
(se numa noite de inverno um viajante)



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- mazgani -
(thirst)

terça-feira, 2 de março de 2010

italo calvino vs the beatles

as cidades e o nome. 5.

(...)
irene é um nome de cidade vista de longe, e se
no aproximarmos muda logo.
a cidade para quem passa sem entrar nela é uma,
e outra para quem é tomado por ela e já não sai;
uma é a cidade a que se chega pela primeira vez,
e a outra a que se deixa para nunca mais voltar;
cada uma delas merece um nome diferente; talvez
de irene já tenha falado sob outros nomes; tal-
vez não tenha falado senão de irene.

- italo calvino -
(as cidades invisíveis)



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- the beatles -
(magical mystery tour)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

italo calvino vs collapse under the empire

as cidades e a memória. 2.

o homem que cavalga longamente por terrenos bravios
sente o desejo de uma cidade. finalmente chega a
isidora, cidade onde os prédios têm escadas de cara-
col incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam
artísticos óculos e violinos, onde quando o foras-
teiro está indeciso entre duas mulheres encontra
sempre uma terceira, onde as lutas de galos degene-
ram em brigas sangrentas entre os apostantes. era
em todas estas coisas que ele pensava quando deseja-
va uma cidade. assim isidora é a cidade dos seus so-
nhos: com uma diferença. a vida sonhada continha-o
jovem; a isidora chega em idade tardia. na praça há
o paredão dos velhos que vêem passar a juventude;
ele está sentado em fila com eles. os desejos são
já recordações.

- italo calvino -
(as cidades invisíveis)



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- collapse under the empire -
(the taste of last summer)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

italo calvino vs nils frahm

apertas o cinto. o avião está a aterrar. voar é o con-
trário de viajar: atravessas uma descontinuidade do es-
paço, desapareces no vácuo, aceitas não estar em parte
nenhuma durante uns momentos que são também uma espé-
cie de vácuo no tempo; depois reapareces, num lugar e num
instante sem relação com o onde e com o quando em que
tinhas desaparecido. entretanto o que fazes? como ocu-
pas esta tua ausência em relação ao mundo e do mundo em
relação a ti? lês; não despegas o olho do livro entre
um aeroporto e o outro, porque para além da página está
o vácuo, o anonimato das escalas aéreas, do útero metá-
lico que te contém e te nutre, da multidão passageira
sempre diferente e sempre igual. mais vale ateres-te a
esta outra abstracção do percurso, realizada através da
anónima uniformidade dos caracteres tipográficos: aqui
também é o poder de evocação dos nomes que te persuade
que estás a sobrevoar qualquer coisa e não o nada.

- italo calvino -
(se numa noite de inverno um viajante)



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- nils frahm -
(my things)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

italo calvino vs rolling stones

talvez o erro seja estabelecer que em princípio esta-
mos eu e um telefone num espaço finito como a minha
casa, quando o que tenho de comunicar é a minha situação
em relação a muitos telefones que tocam, telefones que
se calhar não me chamam a mim, não têm comigo nenhuma
relação, mas basta o facto de eu poder ser chamado a um
telefone para tornar possível, ou pelo menos pensável
que possa ser chamado por todos os telefones. por exem-
plo quando toca o telefone numa casa vizinha e por um
momento me pergunto se não é na minha casa que toca,
dúvida que logo se revela infundada mas que no entanto
permanece um resíduo visto que podia acontecer que na
realidade a chamada fosse mesmo para mim mas por um
engano de número ou devido a mau contacto dos fios fos-
se parar ao vizinho, tanto mais que naquela casa não há
ninguém para atender e o telefone continua a tocar, e
então na lógica irracional que o toque nunca deixa de
despertar penso: talvez seja mesmo para mim, talvez o
vizinho esteja em casa mas não atenda porque já sabe,
talvez quem ligou também saiba que está a chamar o nú-
mero errado mas o faça de propósito para me pôr neste
estado, sabendo que não posso atender mas sei que deve-
ria atender.

- italo calvino -
(se numa noite de inverno um viajante)



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- rolling stones -
(paint it black)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

italo calvino vs johann sebastian bach

o diabo deve ser a carta que no meu ofício mais se encontra
com maior frequência: não será toda a matéria-prima do es-
crever um emergir de garras peludas, de mordeduras cani-
nas, de cornadas de cabra, violências impedidas que se deba-
tem nas trevas? mas isto pode-se ver de duas maneiras: que
este formigueiro demoníaco dentro das pessoas singulares e
plurais, nas coisas feitas ou que se julga feitas e nas palavras
ditas ou que se julga dizer, é uma maneira de fazer e de dizer
que não parece bem, e convém suprimir tudo, ou então que,
pelo contrário, é o que mais conta e já que existe será acon-
selhável fazê-lo aparecer; duas maneiras de ver as coisas
que depois por sua vez se misturam de variadas formas,
porque poderá acontecer que o negativo por exemplo seja
negativo mas necessário, pois sem ele, o positivo não é po-
sitivo, ou que não seja negativo de modo nenhum, enquanto
o único negativo quando muito é o que se julga positivo.

- italo calvino -
(taberna dos destinos cruzados)


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- johan sebastian bach (keith jarrett) -
(goldberg variations [variation 16])

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

italo calvino vs jan jelinek

foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com
o título que procuravas. atrás desta pista visual, lá foste
abrindo caminho pela loja dentro através da barreira
cerrada dos livros que não leste, que de cenho franzido te
olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te.
mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio
deles se estendem por hectares e hectares os livros que
podes passar sem ler, os livros feitos para outros
usos para
além da leitura, os livros já lidos sem ser
preciso sequer
abri-los por pertencerem à categoria
do já lido ainda
antes de ser escrito. e assim transpões
a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima
a infantaria
dos
livros que se tivesses mais vidas para viver
certamente lerias também de
bom grado mas
infelizmente os dias que tens para viver são
os que
tens contados
. com um movimento rápido passas por cima
deles e vais parar ao meio das falanges dos livros que tens
a intenção de ler mas antes deverias ler outros
, dos
livros demasiado caros que podes esperar comprar
quando
forem vendidos em saldo, dos livros idem
idem aspas aspas
quando forem reeditados em for-
mato de bolso
, dos livros que podes pedir a alguém
que te empreste
e dos livros que todos leram e por-
tanto é quase como se também os tivesses
lido. esca-
pando a estes assaltos, avanças para diante das torres do re-
duto, onde te opõem resistência
os livros que há muito tempo programaste ler,
os livros que há anos procuravas sem os encontrares,
os livros que tratam de alguma coisa de que te ocupas
neste
momento,
os livros que queres ter para estarem à mão em
qualquer
circunstância,
os livros que poderias pôr de lado para leres se calhar
este verão
,

os livros que te faltam para pores ao lado de outros
livros
na tua estante,
os livros que te inspiram uma curiosidade repentina,
frenética e não claramente justifica
da
.
e lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em
campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já
calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio
seja atacado pelas emboscadas dos livros lidos há tanto
tempo
que já seria altura de voltar a lê-los e dos livros
que dizes
sempre que leste e seria altura de te decidires
a lê-los mesmo
.

- italo calvino -
(se uma noite de inverno um viajante)

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- jan jelinek -
(tendency)