quarta-feira, 30 de março de 2011

julio cortázar vs giant sand


preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio


pensa nisto: quando te oferecerem um relógio, oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis, não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. oferecem-te - ignoram-no, é terrível ignorá-lo - um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia, como um bracito desesperado pendente do pulso. oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia ao chão e se parta. oferecem-te uma marca, a convicção de que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.

- julio cortázar -



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- giant sand -
(cracklin' water)

terça-feira, 1 de março de 2011

wislawa szymborska vs steve reich

ainda

em vagões aferrolhados
os nomes atravessam o país.
mas para onde vão
e se um dia sairão,
não perguntem, não respondo, não sei.

o nome natão desfere murros na parede,
o nome isaac em loucura canta,
o nome sara por água grita
para o nome aarão que morre de sede.

não saltes em movimento, ó nome de david.
tu és nome à derrota condenado,
nome sem casa, que não se usa
e nesta terra pesa demasiado.

que nosso filho tenha nome eslavo.
porque aqui até cabelos nos contam,
aqui, na separação do bem e do mal,
também nomes e olhos importam.

não saltes. nosso filho será lech.
não saltes. ainda é cedo.
não saltes. a noite ri-se e arremeda
o bater das rodas.

uma nuvem feita de gente passa sobre o país,
muita nuvem, pouca chuva, uma lágrima,
uma lágrima, pouca chuva, tempo seco.
no bosque negro perdem-se os carris.

pouca-terra, bate a roda. bosque negro.
pouca-terra, o comboio de clamores a passar.
pouca-terra, acordada na noite ouço
pouca-terra, o martelar do silêncio no silêncio.

- wislawa szymborska -


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- steve reich -
(different trains, for double string quartet & tape. 
europe - during the war)