quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

roberto juarroz vs nebulo

qualquer movimento mata algo.

mata o lugar que se abandona,
o gesto, a posição irrepetível,
algum anónimo organismo,
um sinal, um olhar,
um amor que voltava,
uma presença ou o seu contrário,
a vida sempre de algum outro,
a própria vida sem os outros.

e estar aqui é mover-se,
estar aqui é matar algo.
até os mortos se movem,
até os mortos matam.
aqui o ar cheira a crime.

mas o odor vem de mais longe.
e até o odor morre.

- roberto juarroz -
(poesia vertical, trad. menino mau)



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- nebulo -
(mecaninduction)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

italo calvino vs collapse under the empire

as cidades e a memória. 2.

o homem que cavalga longamente por terrenos bravios
sente o desejo de uma cidade. finalmente chega a
isidora, cidade onde os prédios têm escadas de cara-
col incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam
artísticos óculos e violinos, onde quando o foras-
teiro está indeciso entre duas mulheres encontra
sempre uma terceira, onde as lutas de galos degene-
ram em brigas sangrentas entre os apostantes. era
em todas estas coisas que ele pensava quando deseja-
va uma cidade. assim isidora é a cidade dos seus so-
nhos: com uma diferença. a vida sonhada continha-o
jovem; a isidora chega em idade tardia. na praça há
o paredão dos velhos que vêem passar a juventude;
ele está sentado em fila com eles. os desejos são
já recordações.

- italo calvino -
(as cidades invisíveis)



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- collapse under the empire -
(the taste of last summer)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

chico buarque vs damon albarn & world music police

mas um homem sem compromisso, com uma mala na mão,
está comprometido com o destino da mala.

- chico buarque -
(estorvo)



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- damon albarn & world music police -
(nabintou diakite)

miguel torga vs nils frahm

de tanto olhar o sol

de tanto olhar o sol,
queimei os olhos,
de tanto amar a vida enlouqueci.
agora sou no mundo esta negrura.
à procura
da luz e do juízo que perdi.

- miguel torga -


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- nils frahm -
(said and done)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

jean genet vs rjd2

zona secreta, solidão onde se refugiam os seres - e
as coisas -, é ela que dá beleza à rua: por exemplo,
se for sentado num autocarro basta olhar pela janela.
a rua cede o que o autocarro devassa. sigo demasiado
depressa para ter tempo de reter rostos ou gestos, a
velocidade exige do meu olhar igual velocidade, e por
isso nem um rosto, um corpo ou atitude sequer, me es-
peram: tudo está ali nu.

- jean genet -
(o estúdio de alberto giacometti)



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- rjd2 -
(the stranger)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

flannery o'connor vs sonic youth

um dia mrs. hopewell agarrou um dos livros que
a rapariga acabava de pousar, abriu-o ao acaso e
leu: «a ciência, por outro lado, tem de assumir
de novo a sua sobriedade e a sua seriedade e de-
clarar-se interessada unicamente naquilo que
existe. o nada - o que pode o nada ser para a
ciência senão um horror e um fantasma? se a ci-
ência está correcta, então há uma realidade que
é inegável: a ciência procura saber nada sobre
nada. esta é afinal, a aproximação estritamente
científica ao nada. sabê-lo através do nosso de-
sejo de sabermos nada do nada.» estas palavras
haviam sido sublinhadas com um lápis azul e ti-
veram em mrs. hopewell o efeito de uma encanta-
ção demoníaca em código. fechou o livro a cor-
rer e saiu do quarto como se estivesse a ter os
arrepios que antecedem a febre.

- flannery o'connor -
(a gente sã do campo)



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- sonic youth -
(tokyo eye)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

julio cortázar vs les fragments de la nuit

a um general

região de mãos sujas de pincéis sem cabelos
de meninos boca abaixo de escovas de dentes

zona onde a ratazana se enobrece
e há bandeiras inúmeras e cantam hinos
e alguém te prende, filho da puta,
uma medalha sobre o peito

e apodreces o mesmo.

- julio cortázar -
(trad. menino mau)



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- les fragments de la nuit -
(la ronde des fees)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

gonçalo m. tavares vs rjd2

fritjof capra

claro que a física é uma fatia da ciência e a ciência
é uma fatia do mundo, mas se provares uma fatia de um
bolo ficarás com o gosto do bolo todo. claro que se
uma coisa é homogénea no sabor, não necessitas de a
deglutir por completo para dela retirares equações ou
teorias praticamente definitivas.
nenhum museu tem asas a não ser que retires brusca-
mente a força de gravidade ao passado.

- gonçalo m. tavares -
(biblioteca)



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- rjd2 -
(get it)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

roberto juarroz vs clogs

poderia talvez esquecer algo que tenha escrito
e voltar a escrevê-lo da mesma maneira.

poderia esquecer a vida que tenha vivido
e voltar a vivê-la da mesma maneira.

poderia esquecer a morte que morrerei amanhã
e voltar a morrê-la da mesma maneira.

mas há sempre um grão de pó da luz
que parte a engrenagem das repetições:
poderia esquecer algo que tenha amado
mas não voltar a amá-lo da mesma maneira.

- roberto juarroz -
(poesia vertical, trad. menino mau)



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- clogs -
(veil waltz)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

jean-paul sartre vs hecq

(...)
o banqueiro - vejamos: costumo dividir os homens
em três categorias. os que têm muito dinheiro, os
que não têm nenhum, e os que têm apenas um pouco.
os primeiros querem conservar o que têm: os seu
interesse é manter a ordem; os segundos querem
conseguir o que não têm: o seu interesse é des-
truir a ordem actual e estabelecerem uma outra que
lhes seja vantajosa. tanto uns como os outros, são
realistas, pessoas com quem podemos entender-nos.
os terceiros querem subverter a ordem social para
conseguirem o que não possuem, tentando ao mesmo
tempo conservá-la para que não lhes arrebatem
aquilo que já têm. assim, conservam de facto aqui-
lo que destroem na ideia. ou então, destroem de
facto aquilo que fingem conservar. são esses os
idealistas.
(...)

- jean-paul sartre -
(o diabo e o bom deus)



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- hecq -
(typhon)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

ruy belo vs johann johannsson

serão tristes as oliveiras?


aquela senhora que conheci no comboio, olhando pela
janela, disse-me a certa altura que a oliveira é uma árvore
triste. olhei também e estive quase a concordar. agora feli-
cito-me, porque não foi preciso. lembro-me que a senhora
ia vestida de preto. talvez lhe tivesse morrido alguém. às
oliveiras daquele olival que passava lá fora é que eu tenho a
certeza de que não faltava nada: nem sol, nem uma leve brisa,
nem um fruto grado, prometedor. e perguntei para mim, ao
descer do comboio:
- porque maltratamos as oliveiras?

- ruy belo -


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- johann johannsson -
(fordlandia - aerial view)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

jean genet vs snowman

qualquer homem poderá talvez sentir uma espé-
cie de mágoa, ou pavor, ao constatar como o
mundo e a sua história se mostram entregues a
um inelutável movimento, sempre expansivo, que
só motivos cadda vez mais grosseiros modificam
as manifestações visíveis desse mundo. e o
mundo visível é como é, nunca através da nossa
acção chegaremos a transformá-lo noutro. nos-
tálgicos, porém, sonhamos um universo onde o
homem em vez de agir tão furiosamente sobre a
aparência visível, se aplique no destruí-la,
não apenas negando a acção, mas despojando-se
o bastante para pôr a nu o ponto secreto, den-
tro de si, a partir do qual seja possível ou-
tra aventura humana.

- jean genet -
(o estúdio de alberto giacometi)



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- snowman -
(we are the plague)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

vinicius de moraes vs errors

paisagem

subi a alta colina
para encontrar a tarde
entre os rios cativos
a sombra sepultava o silêncio.

assim entrei no pensamento
da morte minha amiga
ao pé da grande montanha
do outro lado do poente.

como tudo nesse momento
me pareceu plácido e sem memória
foi quando de repente uma menina
de vermelho surgiu no vale correndo, correndo…

- vinicius de moraes -


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- errors -
(antipode)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

italo calvino vs nils frahm

apertas o cinto. o avião está a aterrar. voar é o con-
trário de viajar: atravessas uma descontinuidade do es-
paço, desapareces no vácuo, aceitas não estar em parte
nenhuma durante uns momentos que são também uma espé-
cie de vácuo no tempo; depois reapareces, num lugar e num
instante sem relação com o onde e com o quando em que
tinhas desaparecido. entretanto o que fazes? como ocu-
pas esta tua ausência em relação ao mundo e do mundo em
relação a ti? lês; não despegas o olho do livro entre
um aeroporto e o outro, porque para além da página está
o vácuo, o anonimato das escalas aéreas, do útero metá-
lico que te contém e te nutre, da multidão passageira
sempre diferente e sempre igual. mais vale ateres-te a
esta outra abstracção do percurso, realizada através da
anónima uniformidade dos caracteres tipográficos: aqui
também é o poder de evocação dos nomes que te persuade
que estás a sobrevoar qualquer coisa e não o nada.

- italo calvino -
(se numa noite de inverno um viajante)



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- nils frahm -
(my things)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

fernando gomes vs duchess says

contratempo

estava sempre a inventariar o tempo. tinha esse vício
colado à pele desde que se lembrava. tudo era cronome-
tricamente contado e meticulosamente guardado na gaveta
da memória reservada às coisas inúteis: os anos de so-
lidão, os meses de angústia , as semanas de cansaço, os
dias de raiva, as horas de insónia, os minutos de amor,
os segundos de prazer, o décimo de segundo que levou a
tomar a decisão, o centésimo em que hesitou e o milési-
mo que demorou a premir o gatilho.

- fernando gomes -


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- duchess says -
(black flag)

vinicius de moraes vs gil scott-heron

a morte

a morte vem de longe
do fundo dos céus
vem para os meus olhos
virá para os teus
desce das estrelas
das brancas estrelas
as loucas estrelas
trânsfugas de deus
chega impressentida
nunca inesperada
ela que é na vida
a grande esperada!
a desesperada
do amor fratricida
dos homens, ai! dos homens
que matam a morte
por medo da vida.

- vinicius de moraes -


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- gil scott-heron -
(me and the devil)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

enrique vila-matas vs damon albarn & world music police

um boneco que pretendia ser o fantasma da ópera:
«a verdade é que se olharmos bem, a literatura
viverá enquanto alguém que se dispuser a escrever
uma simples carta duvide uns instantes da maneira
de tornar verosímil o que nela se propõe dizer. e
no pior dos casos, embora supondo que as pessoas
deixem de escrever cartas, a literatura não mor-
rerá se entretanto os poetas, para além de escre-
ver, saibam ler. quer dizer, senhoras e senhores:
os poetas não morrerão, precisamente porque mor-
rem.»

- enrique vila-matas -
(história abreviada da literatura portátil)



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- damon albarn & "world music police" -
(spoons)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

carlos de oliveira vs micachu

definição

o sal é o mar servido à mesa nas suas praias domésticas de linho.

- carlos de oliveira -


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- micachu -
(lips)