quando entrou no camarim de antónio, ele agitava-se
febrilmente. debruçando-se sobre o enfermo, augusto
pegou-lhe nas mãos quentes e suadas. «pobre amigo»,
murmurou, «que posso eu fazer por ti?».
durante longos minutos o outro ergueu para ele o olhar
fixo e vazio, com a expressão de alguém que se
contempla num espelho. augusto acabou por compreender
o que lhe ia pelo espírito. «sou eu, augusto», exclamou
docemente.
«eu sei. és tu... mas também podias ser eu. ninguém
notará a diferença. e contudo tu és grande e eu nunca
fui ninguém.»
«estava a pensar nisso mesmo», disse augusto, sorriso
pensativo nos lábios. «é esquisito não é? um pouco de
tinta gordurosa, uma bexiga, uns trapos carnavalescos
- e não é preciso mais para uma pessoa se transformar
em ninguém! é o que nós somos - ninguém. e ao mesmo
tempo, toda a gente. não é a nós que eles aplaudem,
mas a eles próprios. meu velho, tenho de me ir embora,
mas antes deixa-me dizer-te uma pequena coisa que
aprendi há pouco... sermos nós próprios, unicamente
nós próprios, é algo extraordinário. mas como chegar
a isso, como alcançá-lo? ah!, eis o truque mais difícil
de todos. difícil, exactamente, porque não envolve
esforço. tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem
pequeno, nem hábil nem desajeitado... estás a perceber?
faz o que te vem à mão. de boa vontade, bien entendu.
porque nada há que não tenha a sua importância. nada.
em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. pequenos
sorrisos de satisfação - e é tudo. mas é justamente o
próprio tudo... mais do que alguém pode pedir. fazendo
o trabalhinho sujo, alivias as pessoas dos seus fardos.
isso torna-as felizes, mas a ti torna-te ainda mais
feliz, compreendes? é claro que deves fazê-lo sem
ostentação, por assim dizer. nunca deves mostrar-lhes
o prazer que te dá. se te deixas apanhar, se te desco-
brem o segredo, estás perdido. chamar-te-ão egoísta,
faças por elas o que fizeres. podes fazer tudo por elas
- chegares mesmo a matar-te de trabalho - enquanto não
suspeitarem que te estão a enriquecer dando-te uma ale-
gria que nunca poderias dar a ti próprio...
bem, antónio, desculpa, não vim aqui para fazer dis-
cursos. seja como for, esta noite és tu que me dás um
presente. esta noite posso ser eu próprio sendo tu.
o que ainda é melhor do que ser tu, compris?»
- henry miller -
- francis miller -
- dead can dance -
(the carnival is over)
1 comentário:
Gostei.
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