o tempo de vida é breve e não retorna. vai-se escoandono momento em que escrevo isto e no momento em quevocês me lêem, e o que relógio bate perda, perda, perda,a não ser que nos dediquemos de todo o coração acontrariá-lo.- tennessee williams -
cegarrega para crianças
a velha dormindoo rato roendo
a velha zumbindo
o rato correndo
a velha rosnandoo rato rapandoa velha acordando
o rato calandoa velha em sentido
o rato escondidoa velha marchando
o rato mirando
a velha dizendo
o rato escutando
a velha ordenando
o rato fazendoa velha correndoo rato fugindoa velha caindoo rato parandoa velha olhandoo rato esperandoa velha tremendoo rato avançandoa velha gritandoo rato comento
- mário-henrique leiria -(contos do gin tónico)
quando havia luz suficiente para usar os binóculos ele olhou
através deles para o vale lá em baixo. tudo empalidecendo ao
entrar na escuridão. a cinza macia soprada em espirais sobre
o asfalto. ele estudou o que conseguia ver. os segmentos de
estrada lá em baixo entre árvores mortas. procurando algo
colorido. qualquer movimento. qualquer rasto de coluna de
fumo. baixou os binóculos e tirou a máscara de algodão da
cara e limpou o nariz na parte de trás do pulso e voltou a olhar
para a paisagem através dos binóculos. depois sentou-se
segurando os binóculos e viu a pálida luz do dia congelar
sobre a terra. apenas sabia que a criança era a sua razão
de existir. ele disse: se ele não é a palavra de deus deus
nunca falou.- cormac mccarthy -(the road)(tradução, menino mau)
primeiro pinta uma gaiola com a porta abertadepois pinta
algo gracioso,
algo simples,
algo bonito
algo útil
para o pássaro.
então encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta.
esconde-te atrás da árvoresem falar
sem se mover...
às vezes o pássaro aparece logo
mas ele pode demorar muitos anos
antes de se decidir.
não desanimes.
espera.
espera durante anos se necessário.
a rapidez ou a lentidão do pássaro
não influi no bom resultado do quadro.
quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
observa no mais profundo silêncio
até o pássaro entrar na gaiola.
e quando ele entrar
delicadamente fecha a porta com o pincel.
então
apaga uma a uma todas as grades
tendo cuidado para não tocar
na plumagem do pássaro.
em seguida pinta a árvore
escolhendo o mais bonito dos seus galhos
para o pássaro.
pinta também a folhagem verde
e o frescor do vento
o dourado do sol
e a algazarra das criaturas na relva
sob o calor do verão.
e então espera até que o pássaro decida cantar.
se o pássaro não cantar
é um mau sinal,
um sinal de que a pintura está má.
mas se ele cantar é um bom sinal,
um sinal de que podes assinar.
então, com muita delicadeza,
arranca uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.- jacques prévert -
agora permanecia tranquilamente sentado, tendo apenasa noção das horas pelas gotas de água que caíam da parede,dividindo o grande silêncio numa infinidade de pequenosespaços de tempo, que se transformavam lentamente emdia e noite, tal como o decurso de milhares de dias alongapor seu turno uma vida até à idade madura e à velhice.ninguém lhe falava. a escuridão cobria-lhe o sangue gelado,mas no fundo do seu ser brotava toda a espécie de recor-dações num doce jacto, de modo que, pouco a pouco, seformou num pequeno lago de contemplação onde toda asua vida reflectia.- stefan zweig -(caleidoscópio)
o despertadorum despertador exposto sobre um tapete cheio de póera tudo quanto possuía, para vender, o pobre comerciante árabe.durante dias, reparou que uma velha se interessava pelo relógio.era uma beduína, pertencente a uma daquelas tribos que voam com o vento.«desejas comprá-lo?», perguntou-lhe um dia.«quanto custa?»«pouco. mas não sei se o vendo. se também este desaparecerdeixarei de ter um trabalho».«então porque o tens exposto?»«porque me dá a sensação de viver. e tu porque o queres,não vês que lhe faltam os ponteiros?»«faz tiquetaque?», quis saber a velha.o comerciante deu corda ao despertador fazendo soar um sonoroe metálico tiquetaque. a velha fechou os olhos e percebeu que,na escuridão da noite, podia assemelhar-se a um coração que bateao lado do seu.- tonino guerra -
o gesto da morte
um jovem jardineiro persa diz ao seu príncipe:
- salva-me! encontrei a morte esta manhã. fez-me
um gesto de ameaça. esta noite, por milagre, queria
estar em Ispahan.
o bondoso principe empresta-lhe os seus cavalos.
à tarde, o príncipe encontra a morte e pergunta-lhe:
- esta manhã porque fizeste ao nosso jardineiro um
gesto de ameaça?
- não foi um gesto de ameaça - responde-lhe - mas
sim um gesto de surpresa. pois vi-o longe de ispahan
esta manhã e devo tomá-lo esta noite em ispahan.
- jean cocteau -
(tradução, menino mau)
