zeitgeist
os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde às escuras
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. todavia,
falam de tudo com entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.
os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz;
proíbem o tabaco e o açúcar
e por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, para que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
(...)
- fernando pinto do amaral -
- snowman -
(the blood of the swan)
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