quarta-feira, 31 de março de 2010

fernando aguiar vs astronautalis

errata
(em forma de soneto com rabo)


- logo na primeira página, precisamente na primeira
linha, onde se lê era uma vez... leia-se finalmente...
- na página catorze, na linha quatro, onde se lê
quadro, leia-se quarto.
- na página seguinte, na linha oito e meio, onde se
por meio de, leia-se no meio que.
- quase na página trinta, na linha férrea, onde se lê
tanto mar, leia-se pouca terra.
- na página rasgada, na linha de fogo, onde se lê
forca, leia-se força.
- numa página inexistente, na linha do horizonte,
onde se deveria ler, leia-se mesmo.
- na página do meio, na linha do equador, onde se lê
em paralelo, leia-se em diagonal.
- na página obscura, nas entrelinhas, onde se lê fode-
se
, leia-se pode-se.
- na página solta, na linha terra, onde se lê chão,
leia-se cãho.
- numa página distante, na linha do pensamento,
onde se lê não penso, leia-se mas existo.
- ao virar da página, na linha do infinito, onde se
tem muito que ler, leia-se o muito que se tem.
- na página em branco, na linha do imaginário, onde
não se lê, não se leia.
- numa página perdida, numa linha ao acaso, onde
se lê mesmo assim, leia-se assim mesmo.
- a páginas tantas, na linha com que cada um se cose,
onde se lê entrevista-se, leia-se entredispa-se.
- na última página, mesmo na última linha, onde se
finalmente... leia-se era uma vez...

- fernando aguiar -


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- astronautalis -
(a love song for gary numan)

segunda-feira, 29 de março de 2010

juan ramón jiménez vs snowman

eu não sou eu

sou este
que vai a meu lado sem o ver;
que, por vezes, vejo,
e que, por vezes esqueço.
o que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde não estou,
o que ficará em pé quando eu morrer.

- juan ramón jiménez -
(yo no soy yo, trad. menino mau)



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- snowman -
(daniel was a time bomb)

sexta-feira, 26 de março de 2010

gonçalo m. tavares vs kaki king

goethe

todo o silêncio é tesouro se depois dele surgir a
palavra certa. se depois dele surgir a palavra er-
rada, o silêncio não é tesouro, mas cobardia ou
inabilidade.
no oriente o sofrimento merece cem palavras e a
alegria uma. no ocidente o sofrimento merece uma
palavra e a alegria cem.
certos escritores, no entanto, tendo o ouro exa-
cto no silêncio que fazem, usam apenas uma pala-
vra perante o sofrimento e uma palavra perante a
alegria.
e as duas palavras são uma única.

- gonçalo m. tavares -
(biblioteca)



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- kaki king -
(magazine)

quarta-feira, 24 de março de 2010

pablo neruda vs simeon ten holt

lxviii

quando lê a borboleta
o que voa escrito nas suas asas?
que letras conhece a abelha
para saber o seu itinerário?
e com que números vai subtraindo
a formiga os seus soldados mortos?
como se chamam os ciclones
quando não têm movimento?

- pablo neruda -
(el libro de las preguntas, trad. menino mau)



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- simeon ten holt -
(section 91 e)

terça-feira, 23 de março de 2010

isaiah berlin vs duchess says

tudo é o que é: liberdade é liberdade, não igualdade ou justeza
ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência
tranquila. se a liberdade própria ou da minha classe ou país de-
pende da miséria de um número de outros seres humanos, o sistema
que tal promove é injusto e imoral. mas se eu limitar ou perder
a minha liberdade de forma a diminuir a vergonha de tal desigual-
dade, e não fizer desta forma aumentar materialmente a liberdade
de outros, uma perda absoluta de liberdade ocorre. isto pode ser
compensado por um ganho em justiça ou em felicidade ou em paz,
mas a perda de liberdade 'social' ou 'económica' - é aumentada.
continua no entanto a ser verdade que a liberdade de alguns deve
por vezes ser limitada para garantir a liberdade de outros. se-
gundo que princípio deverá tal ser feito? se a liberdade é um
valor sagrado e intocável, tal princípio não pode existir.
(...)
ainda assim, um compromisso prático tem que ser encontrado.

- isaiah berlin -
(two concepts of liberty, trad. menino mau)


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- duchess says -
(prologue)

robert musil vs damon albarn & world music police

mas muitos se perguntarão se afinal este mundo anda
tanto às avessas que seja preciso estar sempre a dar-
-lhe a volta. o próprio mundo há muito tempo que deu
duas respostas a essa pergunta. de facto, desde que o
mundo é mundo que a maior parte das pessoas, na sua
juventude, acha que ele deve ser virado do avesso.
achavam ridículo que os mais velhos se agarrassem à
ordem existente e pensassem com o coração, que é um
pedaço de carne, em vez de o fazerem com o cérebro.
essas pessoas mais novas sempre consideraram que a
estupidez moral dos mais velhos era também sinal de
uma incapacidade de estabelecer novas relações, tal
como a vulgar estupidez intelectual; a moral que lhes
é própria é uma moral da realização, do heroísmo e da
mudança. no entanto, mal chegam à idade madura, es-
quecem tudo isso e nem querem ouvir falar dela.

- robert musil -
(o homem sem qualidades)



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- damon albarn & world music police -
(nabintou diakite)

segunda-feira, 22 de março de 2010

marcelo masola vs heliocentrics + mulatu astatke

e lentamente começo
a entender-me com o mundo.

no reencontro
com a impetuosa luz do dia
e a sedutora sombra da noite
volto a escutar o diálogo
entre o passado e o presente
e sinto também
a força e a forma
na rítmica pulsação das horas
e na agradável harmonia da paisagem.

entretanto
no claro original da existência
uma assembleia de rumores
celebra o mais alto sonho
e enquanto a glória
sustenta a perfeição dos deuses
a comovedora peregrinação do espírito
transita a sua invisível órbita
retornando
da livre expiração do espaço
ao sonho da revelação infinita.

eu uma vez mais
chego ao meu caos necessário
apaixonadamente aberto.

- marcelo masola -
(kosmos, trad. menino mau)



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- heliocentrics + mulatu astatke -
(masengo)

quinta-feira, 18 de março de 2010

witold gombrowicz vs london elektricity

(...)
o prazer físico daquela viagem consistia antes de mais
no facto de o balão ser enorme e inchado e ainda
1) de se poder navegar quase sobre a cabeça das pessoas
mas fora do alcance das suas mãos estendidas;
2) de, se se encontrasse uma árvore ou uma casa, se po-
der tomar altura e voltar a descer logo a rasar o solo;
3) de o balão, apesar de enorme, ser extremamente sen-
sível, silencioso e submisso aos mais pequenos capri-
chos do ar, e de nós na gôndola sermos exactamente como
ele, de termos tomado a sua dócil alma infantil;
4) de a aragem, que aos outros só acariciava as faces,
nos levar, a nós, e de nunca ser possível prever o nos-
so destino no espaço;
5) de, sem nenhuma maquinaria, para além de um candeei-
ro a querosene, e mesmo sem nenhum gás, mas apenas com
a tela, as cordas, a gôndola, nós e o ar, haver a tela,
as cordas, a gôndola e nós no ar;
6) e sexto e último, na magnífica sombra esférica a des-
lizar pela relva.
(...)

- witold gombrowicz -
(aventuras)



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- london elektricity -
(fast soul music)

quarta-feira, 17 de março de 2010

augusto monterroso vs nils frahm

o paraíso imperfeito

- é verdade - disse mecanicamente o homem,
sem tirar a vista das chamas que ardiam na la-
reira naquela noite de inverno - ; no paraíso
há amigos, música, alguns livros; o único mal
de ir para o céu é que dali o céu não se vê.

- augusto monterroso -


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- nils frahm -
(in the sky and on the ground)

terça-feira, 16 de março de 2010

héctor yánover vs cornelius

xvi

do ontem restam contos,
histórias fabulosas,
belíssimas máquinas.
as religiões e os preceitos
são palavras do sonho do poeta,
palavras nada mais, pura beleza.

o ontem é remoto,
só o futuro conta.
abram, abram o coração
e o vento
empurrará as velas.

- héctor yánover -
(trad. menino mau)



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- cornelius -
(new music machine)

robert walser vs high contrast

graças a deus que ainda há quem tenha dúvidas e quem
tenha a tendência para hesitar. como se todos esses
que cortam a direito e logo resolvem tudo de uma pe-
nada, e ainda assim se dão ao luxo de serem exigentes,
fossem para nós um modelo e fossem bons cidadãos do
país a que pertencem. isso, de modo nenhum! e os im-
perfeitos são mais perfeitos que os perfeitos e os
imprestáveis têm muitas vezes mais préstimo do que os
que são considerados prestáveis e, aliás, não há ne-
cessidade de se ter sempre à disposição todas as coi-
sas do mundo, ao mesmo tempo ou com a maior das pres-
tezas. bom será que continue a haver para as pessoas,
também no nosso tempo, o luxo de uma vida boa e que
vá para o diabo uma sociedade que pretenda eliminar
todo o bem-estar e toda a descontracção!

- robert walser -
(o salteador)



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- high contrast -
(tread softly)

quinta-feira, 11 de março de 2010

josé miguel silva vs massive attack

um ser humano é um combinado de egoísmo,
sofrimento e necessidade. não comove ninguém.
uma pedra não comove ninguém. a beleza
é um acidente banal e pressupõe a morte;
muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala,
chega a ser assustador. a inteligência, refrescante
como um duche, sabe bem, no estio; mas agora,
que é inverno toda a vida, que lugar atribuir
à inteligência? o de criada de servir nos aposentos
da ganância. não comove, é evidente, ninguém.
a bondade, sim, comove. mas é tão débil
e tão rara que ninguém a ouve. não é fácil,
assim, encontrar algo que possamos amar. eu
tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer:
tudo me parece, até a música, produto de uma falha.
vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer
quem me convença que bem outra poderia ser
a vida. tudo se mostra sob espelhos deformantes,
tudo arde numa estranha aceitação. francamente,
não consigo perceber. e gostava tanto, mas tanto,
que alguém me demonstrasse que não tenho razão.

- josé miguel silva -


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- massive attack -
(girl i love you)

quarta-feira, 10 de março de 2010

carlos cullere vs rjd2

o uranógrafo

a minha missão é traçar, cada noite, os desenhos astrais.
no fundo sempre renovado dum azul que se transmuta em negro
disponho os brilhos maiores e menores, os deslumbrantes e os
ínfimos apenas perceptíveis.

mas mais que este iluminar mecânico incumbe-me a responsa-
bilidade de que o desenho permaneça idêntico noite após noite,
desde a criação do universo até ao dia acordado, isto é, o dia
em que os homens tenham conseguido decifrar a mensagem que,
lua após lua, devo compor.

- carlos cullere -
(trad. menino mau)



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- rjd2 -
(giant squid)

terça-feira, 9 de março de 2010

félix gabriel flores vs the death set

panorama

adeus, fim de época,
fim dos tempos.

passam as grandes aves do desterro
com as asas queimadas.
o sol não ilumina mais
e a noite é eterna.

as mãos que palparam as sombras
avançam retrocedendo.
para dentro, para fora
somos trevas
que querem consumir-se na luz
desaparecida.

mordendo-nos a língua,
definitivamente,
calamos.

- félix gabriel flores -
(trad. menino mau)



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- the death set -
(cold teeth)

quino vs blood red shoes


- blood red shoes -
(heartsink)



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- quino -

sexta-feira, 5 de março de 2010

alberto luis ponzo vs gil scott-heron

ponto de partida

duma palavra nascem outras
dum dia nascem sóis diferentes.

duma mão nascem sombras
da memória se esvai o tempo.

do fogo se desprendem lâmpadas
da morte se sustém a eternidade.

- alberto luis ponzo -
(trad. menino mau)


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- gil scott-heron -
(your soul and mine)

quarta-feira, 3 de março de 2010

luis buñuel vs dominic frasca

instrumentação

violinos
meninas pirosas da orquestra, insuportáveis e pedantes.
serras de som.

violas
violinos que já chegaram à menopausa. estas solteironas
ainda conservam bem a sua voz de meia tinta.

violoncelos
rumores de selva e de mar. serenidade. olhos profundos.
têm a persuasão e a grandeza dos discursos de jesus no
deserto.

contrabaixos
diplodocus dos instrumentos. o dia em que se decidam a
dar o grande berro, pondo em fuga os espectadores es-
pavoridos! actualmente, vêmo-los cabecear e grunhir de
contentes com as cócegas que os contrabaixistas lhes
fazem na barriga.
(...)

- luis buñuel -


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- dominic frasca -
(forced entry)

terça-feira, 2 de março de 2010

italo calvino vs the beatles

as cidades e o nome. 5.

(...)
irene é um nome de cidade vista de longe, e se
no aproximarmos muda logo.
a cidade para quem passa sem entrar nela é uma,
e outra para quem é tomado por ela e já não sai;
uma é a cidade a que se chega pela primeira vez,
e a outra a que se deixa para nunca mais voltar;
cada uma delas merece um nome diferente; talvez
de irene já tenha falado sob outros nomes; tal-
vez não tenha falado senão de irene.

- italo calvino -
(as cidades invisíveis)



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- the beatles -
(magical mystery tour)

segunda-feira, 1 de março de 2010

bertolt brecht vs loscil

do rio que tudo arrasta

do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.

- bertolt brecht -


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- loscil -
(endless falls)