se quisermos passar sem problemas por portas abertas,
é bom não esquecer que elas têm ombreiras sólidas; este
princípio segundo o qual o velho professor sempre tinha
vivido, mais não é do que uma exigência do sentido de
realidade. ora, se existe um sentido de realidade - e nin-
guém duvidará de que ele tem direito à existência - , en-
tão também tem de haver qualquer coisa a que possamos
chamar o sentido de possibilidade.
aquele que o possui, não diz, por exemplo: isto ou aquilo
aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer aqui, mas in-
ventará: isto ou aquilo poderia, deveria, teria de aconte-
cido aqui. e quando lhe dizem que uma coisa é como é,
ele pensa: provavelmente, também poderia ser diferente.
assim, poderia definir-se o sentido de possibilidade como
aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também po-
deria ser e de não dar mais importância àquilo que é do
que aquilo que não é. como se vê, as consequências desta
disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não
é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pes-
soas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou
então as duas coisas como sendo indiferentes. esses ho-
mens do possível vivem, como se costuma dizer, numa
trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos
e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas,
acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pes-
soas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo
julga saber melhor e em tudo põe defeito.
quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes tam-
bém idealistas, mas é claro que com isso só se alude à
natureza débil, incapaz de compreender a realidade, ou
que evita por melancolia, uma natureza na qual a falta
do sentido de realidade é um verdadeiro defeito.
o possível, porém, não abarca apenas os sonhos dos neu-
rasténicos, mas também ainda os desígnios ainda ador-
mecidos de deus. uma experiência possível ou uma ver-
dade possível não são iguais a uma experiência real e
uma verdade real menos o valor da sua realidade, mas
têm, pelo menos do ponto de vista dos seus partidários,
algo de muito divino, um fogo, um ímpeto, uma vontade
de construir e um utopismo consciente que não teme a
realidade, antes vê nela uma missão e uma invenção.
- robert musil -
(o homem sem qualidades)
- nebulo -
(wen)
as cinzas de gramsci
ii
(...)
estes magros ciprestes, esta morrinha negra
que salpica os muros em redor
de pálidos rabiscos de buxo, que o crepúsculo
adoça e depois apaga em acres
cheiros de alga... essa erva rara
e inodora, onde roxo mergulha
o ar, com um arrepio de menta,
ou de feno podre, e calma aí começa,
na melancolia do dia, a abafada
trepidação da noite. rude
é o clima, dulcíssima é a história
deste chão, entre estes muros, onde ressuma
outro chão; (...)
- pier paolo pasolini -
- erik levander -
(månen viskar)
introdução aos contos de 1 minuto
eu gostaria de falar sobre os meus contos de 1 minuto, que
tipo de textos são estes, qual a sua particularidade, o seu
objectivo, etc.
então, primeiro, como o seu nome demonstra, são curtos.
duram meio ou um minuto, talvez um pouco mais. e como
são tão curtos, não é muito cansativo fazê-los.
talvez fosse melhor mostrar como se podem escrever contos
de um minuto. não é uma ocupação complicada, qualquer
pessoa que saiba ler e tenha bom gosto consegue aprender e,
depois de um pouco de exercício, se tiver uma meia hora livre,
senta-se e escreve alguns contos de um minuto. então, vamos
começar.
damos-lhe um título? qual? o título podia ser: conto de 1 mi-
nuto.
o resto vai de vento em popa.
agora vamos combinar de que tema trata o conto. sugiro que
não se gastemos tempo na procura de um tema. podemos es-
crever um conto de um minuto sobre qualquer coisa. sobre o
que acontece em casa, sobre o primeiro objecto que encon-
tramos por acaso, sobre a primeira coisa que nos passa pela
cabeça. porque, como numa gota que está no mar, em tudo o
que pensamos sentimos que está incluída a nossa vida intei-
ra. eu faço isto desta maneira há muitos anos e resultou mui-
to bem...
o resto é já brincadeira. agora só temos de ter cuidado para
sermos breves. isso também não é uma coisa difícil. devíamos
sempre pensar que o que sabemos também o sabem as outras
pessoas, que o que compreendemos qualquer outra pessoa é
capaz de compreender. portanto, não precisamos de falar mui-
to. a arte, em todo o caso, resume sempre, condensa. digamos,
por exemplo, que se alguém deseja comer canja, não compra a
sopa feita no supermercado, mas vai lá e compra um pequeno
cubo. leva-o para casa e faz uma sopa densa ou diluída, segun-
do o seu gosto.
do mesmo modo, o escritor condensa tudo o que tinha vivido e
pensado num pequeno cubo. o leitor também tem cabeça e
imaginação, que começam a funcionar logo que o escritor se
cala. temos de meter bem na cabeça que devemos evitar a in-
continência da linguagem.
façam o favor de ter presente isso quando começarem a escre-
ver contos de um minuto. o meu ponto de partida é que nós,
sempre que vivemos no mesmo país, e no mesmo século, te-
mos sonhos, grosso modo, idênticos. eu procurei sempre essa
coisa comum, o que é essencial, lembrado por todos. muitas
vezes uma só palavra é suficiente. uma só palavra pode ter,
efeito, tal como à noite, com um só toque, várias ruas ficam
iluminadas. às vezes penso que estes não são contos verdadei-
ros. se calhar devia dizer que eu só faço sinais. mas para fazer
sinais são precisas duas pessoas. uma que dá e a outra que re-
cebe. agora peço-lhes que abram a vossa imaginação perante
eles.
- istván örkény -
(histórias de 1 um minuto)
- alva noto -(prototype 1)
vejam: a razão, meus senhores, é uma excelente coisa, é ver-
dade; mas a razão não é mais do que a razão, e só satisfaz a
capacidade humana de raciocinar, ao passo que a vontade é
a manifestação da vida total; isto é, de toda a vida humana
inclusive da razão e de todos os escrúpulos possíveis. e se a
nossa vida não se revela às vezes muito nesta manifestação
apesar de tudo é a vida, e não unicamente a extracção da raiz
quadrada. porque eu, por exemplo, quero viver de uma ma-
neira completamente natural para satisfazer a minha capaci-
dade de viver e não a minha faculdade de raciocínio, que re-
presenta aproximadamente a vigésima parte da minha capa-
cidade de viver. que sabe a razão a respeito disso? a razão só
sabe aquilo que teve tempo de saber (pode ser que haja algu-
mas coisas que ela nunca venha a saber; não é muito consola-
dor dizer isto, mas porque não reconhecê-lo?), ao passo que
a natureza humana actua em massa com tudo o que nela se
contém, e quer se engane ou acerte, vive. desconfio, meus
senhores, que me estão a ouvir com piedade. que me repe-
tem que um homem instruído e inteligente, um homem, nu-
ma palavra, como deverá ser o do futuro, não poderá consci-
entemente desejar nada que seja contrário aos seus interes-
ses e que isto é assim, de maneira matemática. partilho abso-
lutamente da opinião dos senhores, aceito que é matemático.
mas repito-lhes pela centésima vez que há um caso, um só,
em que o homem pode desejar algo de nocivo, insensato e
louco. e isso acontece quando ele quer ter o direito de dese-
jar tudo quanto há de mais absurdo e emancipar-se do dever
de desejar apenas o que é digno. porque essa inépcia, essa
coisa absurda é sem dúvida o meu capricho. e, no entanto,
que poderia haver de mais proveitoso para nós do que ele,
sobretudo em certos casos? num ponto de vista particular,
essa coisa absurda pode ser mais interessante que todas as
conveniências, até no caso em que realmente nos prejudicas-
se e estivesse em conflito com as sãs conclusões da nossa ra-
zão, porque, em última análise, contém para nós aquilo que
mais apreciamos e valorizamos: a nossa personalidade e a
nossa individualidade.
- fiódor dostoiévski -
(a voz subterrânea)
- senking -(sort)
foi logo na montra da livraria que descobriste a capa como título que procuravas. atrás desta pista visual, lá fosteabrindo caminho pela loja dentro através da barreiracerrada dos livros que não leste, que de cenho franzido teolhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te.mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meiodeles se estendem por hectares e hectares os livros que podes passar sem ler, os livros feitos para outros
usos para além da leitura, os livros já lidos sem ser
preciso sequer abri-los por pertencerem à categoria
do já lido ainda antes de ser escrito. e assim transpões
a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima a infantaria
dos livros que se tivesses mais vidas para viver
certamente lerias também de bom grado mas
infelizmente os dias que tens para viver são os que
tens contados. com um movimento rápido passas por cimadeles e vais parar ao meio das falanges dos livros que tens
a intenção de ler mas antes deverias ler outros, dos
livros demasiado caros que podes esperar comprar
quando forem vendidos em saldo, dos livros idem
idem aspas aspas quando forem reeditados em for-
mato de bolso, dos livros que podes pedir a alguém
que te empreste e dos livros que todos leram e por-
tanto é quase como se também os tivesses lido. esca-pando a estes assaltos, avanças para diante das torres do re-duto, onde te opõem resistênciaos livros que há muito tempo programaste ler,os livros que há anos procuravas sem os encontrares,
os livros que tratam de alguma coisa de que te ocupas
neste momento,os livros que queres ter para estarem à mão em
qualquer circunstância,
os livros que poderias pôr de lado para leres se calhar
este verão,os livros que te faltam para pores ao lado de outros
livros na tua estante,
os livros que te inspiram uma curiosidade repentina,
frenética e não claramente justificada.
e lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em
campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já
calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio
seja atacado pelas emboscadas dos livros lidos há tanto
tempo que já seria altura de voltar a lê-los e dos livros
que dizes sempre que leste e seria altura de te decidires
a lê-los mesmo.
- italo calvino -
(se uma noite de inverno um viajante)
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- jan jelinek -
(tendency)
oco
i
escondia-se num dos lugares mais cerrados de
vegetação, o pesadelo das plantas tropicais como
disfarce, e ali ficava até de madrugada abraçando
as árvores, como se no seu sangue não tivesse cres-
cido uma outra seiva, um fel que doía mesmo nos in-
suspeitos momentos em que o paraíso rondava perto.
o único bálsamo era este exercício de extrema igno-
rância e desusada ternura pela rugosidade de um
tronco que se abraça, pela temperatura das formas,
pela densidade das folhas que sobre si desabavam.
mas com a primeira luz, o prodígio cessava, e a dor
extinta regressava. lembrou-se de uma palavra que o
encantara na adolescência. agora já não produzia
qualquer sobressalto em si. era apenas uma palavra
a ressumar afectações antigas, lembranças menos no-
bres, inseguros acolhimentos. "como foste inocente,
ó alba antes do nome". seguir-se-ia o proverbial
hábito de dissimulação, e a negra bílis pouco a
pouco , gota a gota, reuniria de novo o desgosto.
ii
alguns anos depois - não se sabe quantos - regressou
àquele lugar - integralmente curado, como lhe disse-
ram - e as árvores, antes frondosas, estavam mortas
ou agonizantes. não sentiu o mais pequeno sinal de
nostalgia crescendo no oco em si. só o oco em si.- luís quintais -
- fünkstorung -
(test)
seguem as estruturas da linguagem e a estrutura da realidade
(com isto quero dizer o que realmente acontece) em linhas pa-
ralelas? permanece a realidade essencialmente fora da lingua-
gem, separada, obstinada, alienada, não sendo susceptível de
ser descrita? será impossível haver uma correspondência pre-
cisa e vital entre o que é e a nossa percepção disso? ou nós é
que somos obrigados a usar a linguagem de maneira a obscu-
recer e a distorcer a realidade - distorcer o que é, distorcer o
que acontece - porque temos medo dela? somos encorajados
a sermos cobardes. não somos capazes de encarar os mortos
porque é em nosso nome que eles morrem. temos de prestar
atenção ao que anda a ser feito em nosso nome. eu creio que é
devido à maneira como usamos a linguagem que fomos apanha-
dos nesta terrível armadilha, em que as palavras como liberda-
de, democracia e valores cristãos ainda são usados para justifi-
car políticas e actos bárbaros e vergonhosos. temos a obrigação
séria e urgente de sujeitar tais termos a um escrutínio intenso
e crítico. se não o fizermos, tanto o nosso juízo moral como polí-
tico permanecerá fatalmente debilitado.
- harold pinter -
(oh, super-homem. transmitido no opinion, channel 4, 31/05/90)
- ian simmonds -
(jet)
se as cidades estão cheias de passado
é de ausências que se embaciam as ruas
lugares vazios onde as estrelas se apagam
e o que não se disse da melancolia
é que vivemos numa espécie de queda
- maria sousa -
- alva noto & ryuichi sakamoto -
(duoon)
as paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos
habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos.
a mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um
ruído sobreleva, o da morte que tem diante de si o
tempo ilimitado para roer. há aqui ódios que minam e
contaminam, mas como o tempo chega para tudo, cada
ano minam um palmo. a paciência é infinita e mete espi-
gões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos
os dias cresce uma polegada. a ambição não avança
um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda,
e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos.
na aparência é a insignificância a lei da vida: é a insigni-
ficância que governa a vila. é a paciência, que espera
hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - tem
paciência.
- raúl brandão -
(húmus)
- alva noto & ryuichi sakamoto -
(a attack : b transition)
quero voarquero voar-mas saem da lamagarras de chãoque me prendem os tornozelos.quero morrer-mas descem das nuvensbraços de angústiaque me seguram pelos cabelos.e assim suspensono clamor da tempestadecomo um saco de problemas-tapo os olhos com as lágrimaspara não ver as algemas...(mas qualquer balouçar ao vento me parece liberdade.)
- josé gomes ferreira -
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- alec k redfearn & the eyesores -
(blue on white)
ésquilo
a magia é mais auditiva que táctil. os deuses não te tocam,
contam-te segredos.
claro que isto é óbvio, e ainda hoje se sabe que uma canção
mexe mais num corpo que um empurrão ou o soco.
mas os deuses aos surdos contarão segredos em cor; como
se a pintura fosse um sussurro alternativo, uma canção que
permaneceu pousada na matéria.
- gonçalo m. tavares -
(biblioteca)
- jamiroquai -(supersonic)
len: a minha mesa está ali. aquilo é uma mesa. a minha cadeira
está ali. a minha mesa está ali. aquilo é uma fruteira. a minha
cadeira está ali. os meus cortinados estão ali. não há vento.
a noite já vai alta, antes de nascer o dia. isto é o meu quarto.
isto é um quarto. o papel de parede está ali, nas paredes. há seis
paredes. oito paredes. um octógono. este quarto é um octógono.
os meus sapatos estão ali, nos meus pés.
isto é uma viagem e uma emboscada. isto é o centro do frio, uma
paragem na viagem e nenhuma emboscada. esta é a erva espessa
a que me agarro. esta é a moita no centro da noite e da manhã. a
minha lâmpada de cem watts está ali como um punhal. este
quarto mexe-se. este quarto está a mexer-se. mexeu-se. chegou...
a um beco sem saída. a minha imobilidade é esta. não nenhuma
teia. tudo é claro, e abundante. talvez chegue uma manhã. se a
manhã chegar, ela não vai destruir a minha imobilidade, nem o
meu luxo. quer esteja escuro a meio da noite quer esteja luz, nada
se intromete. tenho o meu compartimento. estou encurralado. a
minha arrumação está aqui, e também o meu reino. não há vozes.
do meu lado não se fazem buracos.
- harold pinter -
(os anões)
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- sidsel endresen & bugge wesseltoft -
(survival techniques 1+2)
precipício
as imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele - incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
vil chegada do que amaste, e que agora recordas.
a poesia faz-se contra o esquecimento?
melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.
sem a arruinada ponte não há precipício?
o que conta é o precipício além da arruinada ponte.
- luís quintais -
- paddy mcaloon -
(we were poor)
    «não há razões para viver, mas também não há razões
para morrer. desejaria, senhor director, que, através desta
carta, os jovens da sua cidade compreendessem que a única
maneira que nos permite demonstrar o nosso desprezo pela
vida, é aceitá-la. a vida não merece o trabalho de abandoná-
-la... o suicídio é muito cómodo, demasiado cómodo: eu não
me suicidei. subsiste uma mágoa e não queria partir sem
antes ter a certeza de que levo comigo a estátua da liberdade,
o amor ou os estados unidos. envio, através destas páginas, o
meu protesto mais enérgico perante essa vaga absurda de
suicídios nas pontes suspensas. jovens de nova iorque, escolhei
hotéis sumptuosos se quereis abandonar esta vida. há hotéis
que são, francamente, muito literários. no fim de contas, o
mundo das letras jaz nos hotéis da imaginação. na europa já o
sabem há algum tempo e só se consideram elegantes os suicí-
dios no ritz.»
    a publicação desta carta causou o efeito contrário ao desejado
por skip canell e aumentou escandalosamente o número de
suicídios e de cartas aos juízes.
- enrique vila-matas -
(história abreviada da literatura portátil)
- messer chups -(little blood sucker)
a missão das folhas
naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
- ruy belo -
- jan jelinek -(moiré [piano & organ])
a rua é das crianças
ninguém sabe andar na rua como as crianças. para elas
é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor
umbrais. sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua.
vão com o vento. não vão a nenhum sítio determinado, não se
defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em
dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente cres-
cida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. abrem-se
à aragem. não projectam sobre as pedras, sobre as árvores,
sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm.
vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito
mais longe. e nem sequer sabem que são a alegria de quem
as vê passar e desaparecer.
- ruy belo -
- pascal comelade -
(il ventilateur della f.a.i.)
detector de metais
o detector de metais do aeroporto começou a apitar. pediram
ao passageiro que despejasse os bolsos. continuava a apitar.
tirou o cinto e os sapatos. não parava de apitar. despiu as calças
e a camisa. o detector insistia em detectar. despiu-se todo.
detectava, continuava a detectar, não parava de detectar.
rasgaram-lhe o peito, observaram-no por dentro. rasparam-lhe
os ossos. cortaram-lhe o coração às postas, os pulmões, etc.. e o
detector não parava de detectar. foi então que alguém se lembrou
do óbvio: ele tinha uma saúde de ferro.
- henrique manuel fialho -
- skalpel -(1958)
duplo
também tu serás, já és, um dos que a multidão dilui
sob o peso das suas leis, da sua informe violência.
também tu és um dos ungidos pela lascívia, pelo poder,
pela deserção, esses crimes sem centro e sem culpa
que intoxicam a história, são o bafo quente do passado,
e estendem-se fio a fio, trama a trama, na sarja do futuro.
entre mim e ti, duplo, a guerra, o ódio do mundo.
- luís quintais -
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- alec k redfearn & the eyesores -
(valse ii)
uma invasão de palavrastenta encurralar o silênciomas, como sempre, fracassa.tenta de seguida encurralar as coisasque habitam o silêncio,mas também não o consegue.e vai por fim cercar as palavrasque convivem com o silêncio,mas então produz-se o imprevisto:o silêncio converte-se em palavrapara proteger melhor as palavrasque convivem com ele.e enquanto a invasão das outras palavrasse desvanece como um sopro furtivo,completa-se o insólito:as palavras que restamassemelham-se agora muito mais ao silêncioque as outras palavras.- roberto juarroz -(tradução, menino mau)
- frode haltli -(lude)