depoimento
de seguro,
posso apenas dizer que havia um muro
e foi contra ele que arremeti
a vida inteira.
não, nunca o contornei.
nunca tentei
ultrapassá-lo de qualquer maneira.
a honra era lutar
sem esperança de vencer.
e lutei ferozmente noite e dia,
apesar de saber
que quanto mais lutava mais perdia
e mais funda sentia
a dor de me perder.
- miguel torga -
- kaki king -(lies)
os automóveis saíam de ruas estreitas e fundas e para a luz clarae neutra das praças. as manchas escuras dos peões desenhavamcordões nebulosos. nos pontos em que as linhas mais fortes dosmais apressados cruzavam os fluxos mais tranquilos, esses cordõesengrossavam, escorriam depois mais depressa e, após algumasoscilações, retomavam o seu ritmo regular. centenas de sonsentreteciam-se num ruído metálico de onde saíam aqui e alialgumas pontas, arestas cortantes que se alongavam e retraíam,estilhaços de notas límpidas que logo se desvaneciam. este ruído,cuja singularidade se não pode descrever, seria suficiente para quealguém, mesmo depois de muitos anos de ausência, pudesse reconhecerde olhos fechados que se encontrava em viena, cidade capital eresidencial do império. as cidades, como os homens, reconhecem-sepelo passo.- robert musil -(o homem sem qualidades)
- max richter -(a sudden manhattan on the mind)
"vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui!"
eu olho-os com olhos lassos,
(há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali...
a minha glória é esta:
criar desumanidade!
não acompanhar ninguém.
- que eu vivo com o mesmo sem-vontade
com que rasguei o ventre a minha mãe
não, não vou por aí! só vou por onde
me levam meus próprios passos...
se ao que busco saber nenhum de vós responde
por que me repetis: "vem por aqui!"?
prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...
se vim ao mundo, foi
só para desflorar florestas virgens,
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
o mais que faço não vale nada.
como, pois sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos?...
corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
e vós amais o que é fácil!
eu amo o longe e a miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos...
ide! tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátria, tendes tectos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
eu tenho a minha loucura !
levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
deus e o diabo é que guiam, mais ninguém.
todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre deus e o diabo.
ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
ninguém me peça definições!
ninguém me diga: "vem por aqui"!
a minha vida é um vendaval que se soltou.
é uma onda que se alevantou.
é um átomo a mais que se animou...
não sei por onde vou,
não sei para onde vou
- sei que não vou por aí!
- josé régio -
(cântico negro)
- mindazonatal -(untitled)-anouar brahem -(sur l'infini bleu)
mendigo: não há história.imperador: e alexandre? e césar? e napoleão?mendigo: histórias! quem é esse napoleão?imperador: aquele que conquistou meio mundo e sucumbiu pela própria soberba!mendigo: só dois podem acreditar nisso. ele e o mundo. é mentira. a verdade é que
napoleão foi um homem que remava numa grande galera e que tinha uma cabeça tão
grande que todos diziam: não podemos remar porque não temos espaço para os
cotovelos. quando o barco se afundou, porque eles não remavam, ele encheu a cabeça
de ar e sobreviveu, só ele, e porque estava acorrentado teve de continuar a remar, de
lá de baixo não conseguia ver para onde e todos se afogaram. então ele abanou a
cabeça sobre o mundo e como estava pesada de mais caiu.
imperador: isso é o maior disparate que eu alguma vez ouvi. desiludiste-me muito
com essa história. as outras ao menos foram bem contadas. mas que achas tu do imperador?mendigo: não existe imperador. só o povo é que acha que existe e só uma pessoa se
julga imperador. quando tiverem construído muitos carros de guerra e os tambores
estiverem treinados, então haverá guerra e será procurado um inimigo.
imperador: mas o imperador acabou de vencer o seu inimigo.mendigo: matou-o, não o venceu. o idiota matou outro idiota.- bertolt brecht -(o mendigo ou o cão morto)
- cláudia carvalho -(o mendigo)
- sparks -
(why do you take that tone with me)
debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes,cada um procura reduzir a vida a uma insignificância.todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a umainsignificância, edificar um muro feito de pequenascoisas diante da vida. tapá-la, escondê-la, esquecê-la.- raúl brandão -(húmus)
- andrei tarkovsky -(stalker)- slipknot -(wait and bleed)